Tal qual como uma gaivota que de forma abrupta levanta voo sem aviso, elevando-se elegantemente de águas traiçoeiras, cheias de correntes contrárias. Melhor do que ninguém sabia que havia chegado ao seu limite, espreitava agora pensativa pelas vidraças. Estou a falar de Susana Alberto Batista Salomé, ou, como ela mesma se intitulava em casa ou entre os seus amigos como Suzzy Abs; esta história do Abs era simples tratava-se dum acrónimo do seu nome e por isso se ria sempre que pensava nele, sobretudo quando frisava o Abs dizia que significava travar em segurança; bem conveniente, aliás foi o que fez ao por cobro a uma situação de infidelidade que a incomodava profundamente fazia tempo, e talvez por isso não podia deixar de se sentir feliz especialmente neste dia que acabara de ser Salomé.
Abriu as vidraças da janela do quarto, um elegante quinto andar, do hotel onde se refugiaria durante dois meses uma espécie de auto-exílio, enquanto decorria o seu sumário processo de divórcio. O hotel não era modesto, estava habituada a coisas boas. As vistas não eram nada de especial, uma parede continua e compacta dum lado e doutro de prédios cinzentos enegrecidos pelos tempos, apenas a espaços ténues se poderiam ver pequeníssimas secções de rio, pouco mais. Achou boa ideia ir apanhar um pouco de ar até à varanda, era urgente recuperar o seu equilíbrio emocional, a conversa inesperada que tivera ao fim da manhã com a mãe, teve o condão de a deixar indisposta quase com o dia estragado, a não ser… a essência do que ali a trouxe, e, por isso queria viver livre e de forma intensa a sua vida a partir daquele instante...não iria ser fácil, sabia-o bem, mas, talvez o conseguisse de uma forma diferente. O mais importante de tudo era novamente livre, livre e ainda jovem. A liberdade não é grátis, alguém lhe dissera um dia; existem os pais prontos a interferir na vida dos filhos, dispostos a terem a ultima palavra, isso era certo ou então acabava-se ali mesmo a vida de luxo. Sentia que mas o importante era sair daquela situação e sentir-se confortável, isso era inegável, viver a sua vida sem ter que encarar todos os dias com o homem que tantos problemas lhe criara, nos últimos tempos. A sensação que experimentava agora, era de alívio e por via disso sentir-se livre, não tanto como as gaivotas do Tejo, que voavam na esteira dos barcos lá ao fundo procurando peixe grátis; o palerma do ex-marido nem sequer imaginou em momento algum, o que poderia perder, e, não se está a falar de bens materiais, mas de outras coisas menos palpáveis, tais como uma certa forma de se estar na vida, de sentimentos de honradez e honestidade; não fora ela que se metera com a secretária, por isso ele perdeu e muito. Sentia-se pronta para encarar o mundo sem alianças no dedo anelar abriu a sua janela disposta a que o vento lhe refrescasse as ideias; a conversa da mãe não lhe saía da cabeça, ouviu ao longe uma melodia que lhe fez lembrar outros quintos que procurou esquecer.
O som que lhe chegava abafado era o de uma música suave e acabou por devolver-lhe alguma serenidade embalando-a; vinha de algures, pelo ar, provavelmente do prédio em frente, ou talvez de um dos muitos quartos do lado; era um solo de piano inspirado, de um qualquer compositor clássico que Suzzy Abs não conseguia identificar, mas sabia que gostava, já a tinha escutado por variadíssimas vezes. Abriu a janela e veio até à varanda sentando-se numa cadeira metálica que lá existia que a fez estremecer, enquanto ia escutando tão melodiosa sonata que era balsamo para a sua alma. Aquela coisa de ter de voltar para casa dos pais, estava a tortura-la demasiado toldando-lhe a lucidez que a caracteriza, sobretudo agora que acabara de perder o seu último nome Salomé, passaria a chamar-se unicamente Suzzy acabaria de uma vez por todas com a história do Abs.
- “Deixar o hotel?” Atreveu a retorquir-lhe incrédula, perante o que acabava de escutar.
- “Sim deixar o hotel; o seu pai… não iria achar graça se assim não fosse, aliás já deu ordens para que fosse posto em ordem o seu quarto de solteira.”
- “Não estava a pensar nisso, eu tenho casa...”
- “Casa? Então não ficou para ele…”
- “Sim, mas apenas por uns tempos… depois muda-se.”
- “Por uns tempos! Isso pensa a menina… é mesmo muito ingénua; não tarda mete lá outra em seu lugar, nunca mais de lá sai.”
- “Não quero saber mamã…”
- “Está resolvido, a menina volta para a casa hoje mesmo, e não se fala mais nisso.”
- “Não sei mamã…”
- “Não sabe como?”
- “Será por pouco tempo…” Avisou peremptória, ficando a pensar no que acabava de escutar, deixando o aviso que ficaria apenas o tempo suficiente até encontrar uma casa nova… muito pouco animada com a perspectiva que a sua vida parecia querer tomar; não estava de todo nos seus planos, ter de voltar para a casa dos pais.
- “Mamã eu tenho trinta e dois anos… sei perfeitamente cuidar da minha vida.” Arriscou num último acto de insubmissão já quase de desespero.
- “Trinta e dois anos, uma criança é o que é…, evidentemente que sabe cuidar da sua vida, eu não estou a falar de casas… casas não lhe faltam… precisa é de encontrar uma nova família, de arranjar um marido em condições que lhe dê um filho, a nossa família precisa urgentemente de um filho seu...”
- “Sempre onde existir os superiores interesses de família… E eu… não contarei nessa história por ventura?”
- “Mas é claro que conta, queremos muito vê-la bem… mas também é preciso cuidar dos interesses da família… enquanto não tiver uma vida estável não sai da casa dos pais, que é assim que deve ser.”
Que grande aborrecimento, pensava agora relembrando as palavras da mãe. O piano fazia-se ouvir ecoando pelos ares parecendo vir mesmo na sua direcção como uma seta, deixou-se ficar apática, quase a embalando. Deixou o seu olhar vagueasse ao redor procurando a fonte de onde saía a tal música bem conhecida. Não pode deixar de sentir um arrepio na espinha quando viu abrir-se uma janela do prédio em frente, precisamente à sua frente. Era de lá que vinha o som familiar; instantaneamente passou a ouvir-se ainda de forma mais nítida e intensamente, parecendo-lhe até que alguém do seu interior aumentara o volume vendo-a ali, de olhar distante e pensativo, no momento seguinte Suzzy arregalou os seus olhos sem querer acreditar no que via, nada mais nada menos que um sorriso provocador veio ter consigo na sua direcção. Era ele, o seu ex-marido que a olhava do outro lado da avenida provocador. Sabia que tinha o condão de a deixar furiosa, sabia bem que aquele canalha acabara de fazer amor com a nova namorada, ali mesmo à sua frente, num local escolhido a dedo para lhe mostrar que não precisava dela para nada para ser alguém na vida, dois ou três segundos depois viu sair do interior do quarto uma garota semi-nua que veio agarrar-se a ele, tirando-lhe o cigarro da mão para dar uma longa passa.
Confusa e sem deixar de sentir raiva, viu-o levantar a mão, saudando-a à distancia, como que a dizer-lhe “Olá sou mesmo eu… estou aqui, vim fumar o cigarro da ordem…
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